09 agosto 2016

Admirável Mundo Novo: Quando a distopia de ontem conversa com a realidade de hoje


As distopias – ao contrário da utopia que consiste em “mundos perfeitos”, são projetos de mundos catastróficos – do século 20 surgiram num momento em que o homem encontrava-se indignado, decepcionado com o rumo que a humanidade havia tomado; após décadas de crença na emancipação da humanidade mediante o progresso cientifico, e convicções em correntes ideológicas rumo a uma “sociedade melhor”, o que a época viu foi apenas violentos regimes totalitários, guerras, um cogumelo e uma violenta crise. Talvez o homem tenha falhado? Sob tais condições que este gênero literário surgiu: visto as tragédias que o homem causou a si próprio, os intelectuais se viram céticos quanto a possibilidade de reformas na sociedade, e suas projeções para o futuro não poderiam assumir formas menos trágicas.

Os romances 1984, de George Orwell; Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, encontram-se entre os mais notáveis desse gênero, popularmente lidos até hoje. Cada um ao seu jeito, estes livros descrevem, essencialmente, sociedades futuristas, onde os indivíduos são controlados de acordo com os princípios totalitários do estado; contudo, é o último, escrito em 1932, que recebe maior ênfase, uma vez que encontramos uma impressionante congruência entre suas projeções e a atualidade. 


Enquanto os outros autores imaginavam que no futuro o Estado controlaria o povo por meio de normas rígidas e perseguição aos transgressores, Huxley acreditava que ocorreria o contrário: as pessoas seriam domesticadas sendo mantidas felizes.


Atingir uma sociedade estabilizada e sem sofrimentos, onde tudo funciona perfeitamente como planejado, não seria – nem é – possível mediante os métodos coercitivos dos antigos totalitários. A dominação por meio do medo, onde as pessoas se comportam para evitar sanções ou a morte ( a menos que a ameaça esteja sempre presente reprimindo, como em 1984 onde há cameras em todo local; ou de modo semelhante aos violentos regimes comunistas, cheios de militares e delatores do Estado em meio a população), é completamente ineficiente: causa outras conseqüências desvantajosas para o controlador, o povo fica indignado, improdutivo e se revolta. Todos os governos nesse molde ou cairam pela força do povo ou se manteram no poder contendo à força a população na forma de ditaduras ineficientes; basta olhar para Cuba e Coréia do Norte.No prefácio à edição de 1946, o autor identifica isso com precisão. Na sua visão, a ditadura perfeita, um regime no qual o povo seria mantido perfeitamente sob a vontade do Estado, teria a aparência da democracia, uma prisão sem muros onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos teriam amor a sua escravidão.


Em Admirável Mundo Novo o Estado, mediante a ciência, controla a sociedade de modo a manter a todo custo a estabilidade. No ano de 600 d.F(depois de Ford), assim como no modelo de produção fordista, as pessoas são produzidas em massa em verdadeiras fábricas. Primeiro, são geneticamente pré-determinadas de acordo com a “casta” a qual irão pertencer – cada casta tem uma função, de acordo com a capacidade cognitiva –, em seguida, por meio do condicionamento pavloviano e técnicas de hipnose durante o sono, tem seus comportamentos condicionados de modo a gostarem de certas coisas e repudiarem outras, a fim de manter a segregação das castas e o consumo de produtos. O consumo, o contentamento mais poderoso, é estritamente necessário para manter a organização social; assim, é necessário que as pessoas sejam modeladas de modo suscetível à agressiva propaganda e consumam de tudo, por mais fútil, inútil e ridículo que seja.


O sexo sem restrições e atividades coletivas são estimulados, enquanto as diversões solitárias, o pudor, a fidelidade e introversão são extintos e tratados como patologia.Não existem mais famílias nem laços sentimentais: "todos são de todos", eis a máxima ética.Atividades reflexivas também não podiam existir, apenas o consumo e distrações.Por fim, todos dispunham da “droga perfeita”, o SOMA, utilizada em diferentes quantidades conforme o grau de desconforto, fosse por uma dúvida ou com o cansaço físico.

Desse modo, através do consumo incessante, do uso excessivo de drogas e da imbecilização coletiva, a sociedade perfeita se mantinha em ordem. A população amava o destino que as agências de controle lhes programavam, trabalhavam excessivamente, comprava o que o Estado queria que comprassem e, acima de tudo, eram felizes – Por mais rasa, superficial e morna que seja, continua sendo a felicidade.


Como bem ilustrado, não é necessário, dentro de uma ditadura perfeita, que os dirigentes coajam à força o povo, pois, sob tais circunstâncias, eles amam a sua escravidão, e é baixa a probabilidade de que se comportem de modo contrário aos interesses do controlador. Manter os escravos felizes: é entorno dessa questão que gira toda a ideia de Ditadura do consumo, o controle perfeito, retratada no livro– e rumo à qual, gradualmente, caminhamos.


Obviamente, o futuro não se realizou da maneira nem na ordem que Huxley precisamente projetou, não atingimos uma sociedade de extrema ordem. Também estamos bem longe da felicidade e estabilidade universal; contudo, muitos dos elementos que identificou como necessários para a manutenção da sociedade dos escravos felizes encontram-se presentes em nossa realidade, e quem olhar bem ao seu redor dificilmente não se sentirá dentro do Admirável Mundo Novo.

O SOMA, distrações e a manutenção da felicidade superficial


O amor à servidão, diz o autor, não pode ser estabelecido senão como fruto de uma profunda revolução pessoal nas mentes e nos corpos humanos, e enumera uma série de invenções necessárias para efetuar tal revolução. Não basta condicioná-los a apenas consumir produtos: é preciso algum meio de anular seus desconfortos, a partir dos quais podem surgir problemas para a estabilidade. O SOMA seria a tecnologia desenvolvida para isso, e peça fundamental para manter os escravos felizes.

Na ficção, trata-se de uma droga sintética, a droga perfeita; produzida de modo a não gerar nenhum efeito colateral, proporciona todos os efeitos do álcool, tabaco e alucinógenos: “[...] Podem proporcionar a si mesmos uma fuga da realidade sempre que desejarem, e retornar a ela sem a menor dor de cabeça [...]”. Todos carregam a substancia no bolso, como se fossem caixas de bala, seu uso é extremamente estimulado e os cidadãos não vivem sem ele. Foi feito, exclusivamente, para o uso como entretenimento, como fuga, meio de evitação ou abrandamento imediato de qualquer desconforto, dúvida, angústia, tédio, questionamento ou qualquer descontentamento que a vida pré-fabricada e 12hrs de trabalho podem causar; é, dessa maneira, essencial para manter as pessoas controláveis, felizes e o trabalho do Estado sem empecilhos.

Não dispomos de um meio de fuga tão eficaz quanto o SOMA, mas há muitos outros elementos de semelhante função no século XXI. Se até num mundo estabilizado e planejado as agências de controle precisam produzir fugas para manter a “felicidade”, em nosso mundo instável e impreciso elas são muito mais necessárias.

Não só é cada vez maior o consumo de álcool, como também é cada vez menor a idade em que se inicia a ingestão; o mesmo ocorre com o tabagismo. Nos meios sociais, a bebedeira no final de semana é vangloriada, deve ser mantida como tradição, e não raro os consumidores são reforçados socialmente a tornar seu vicio público, postando fotos para receber like constatar a aprovação alheia de seu comportamento. Os bares estão sempre cheios – principalmente próximos às faculdades. E quando tal substância não serve de fuga para as misérias do mundo que nos cerca, é eficiente em tornar as coisas mais divertidas, nos tornar mais corajosos, socializáveis – em suma, para remediar nossas incapacidades em encontrar felicidade nas condições em que vivemos.

Se no romance o SOMA fosse proibido, e todos os cidadãos programados para não pensar fossem obrigados a encarar o tédio e o autoritarismo de seus algozes, provavelmente não se rebelariam contra os responsáveis pelas condições da qual necessitam fugir, mas sim contra a privação de suas valiosas fugas; de modo muito semelhante observamos, no nosso mundo, grandes movimentos que lutam ferozmente, seja por meio de passeatas ou verdadeiros manifestos, pela legalização de psicotrópicos. Nosso tempo ama e luta pelo direito a suas fugas.

Existe, todavia, um meio muito mais eficiente de tornar as pessoas insensíveis, ou distraídas o suficiente para suportar como inalteráveis as condições aversivas e pensarem apenas o suficiente para não causar muitos estragos no sistema. E assim como o SOMA, é a fuga perfeita, cabe no bolso, baixo custo e pode ser utilizada a qualquer momento: os meios de comunicação em massa, as redes sociais, os jogos e todo o massivo entretenimento frívolo produzido na internet. Huxley acreditava que o rádio e o cinema seriam os principais nessa área, porém não imaginou a força da internet.

Com efeito, se comparado ao romance, o facebook assume função idêntica ao SOMA. Se “com um centímetro cúbico [de SOMA] se curam dez sentimento lúgubres”, bastam dez minutos descendo o feed para aliviar o tédio, ou encontrar uma alegria fugaz em páginas de humor. As páginas de entretenimento, aliás, são as que possuem maior número de seguidores, em contraste com as poucas páginas dedicada a reprodução de informações, conhecimento e literatura. Não é necessário um levantamento estatístico para afirmar que é muito maior a quantia de internautas que se distrai ou foge do que os que se informam – há mais escravos tomando soma do que encarando suas dúvidas.

No Youtube, de modo semelhante, os vídeos/canais de maior acesso não são aqueles em que se abordam questões reflexivas, literatura ou ciência, mas sim aqueles voltados para o entretenimento fútil, cujo conteúdo consiste em jovens contando piadas, fazendo graça, estupidez, fofoca e inúmeras outras coisas que não necessitam de elevada capacidade cognitiva. O engraçado é que, assim como no exemplo, há um tempo diversos criadores de conteúdo desse meio de comunicação rebelaram-se contra agências de controle quando estes ameaçaram limitar o seu soma, a internet.

Na vida cotidiana, basta observar atentamente os ambientes freqüentados pelas castas classes sociais mais baixas, como o transporte público nos horários de pico: nos trens, no metrô, nos ônibus, todos utilizando seus celulares, tomando suas doses de SOMA, para suportar mais um dia de trabalho. É claro que não podemos esquecer a novela das 9h, após as 8h da jornada de trabalho. Escravos felizes?Uma vida suportável?

Outra medida utilizada em 600 d.F para manter a estabilidade, as pessoas consumindo e portanto felizes, era distanciá-las do conhecimento, privando-as de livros, pois o contato com os mesmos poderia causar descondicionamentos perigosos.Aquela geração sequer sabia o que eram livros, pois era mantido ao seu alcance apenas os livros técnicos.

              "[...]não se podia permitir que as pessoas de castas inferiores desperdiçassem o                                  tempo da comunidade com livros, e que havia sempre o perigo de lerem coisas que                              provocassem o indesejável descondicionamento de algum dos seus reflexos[...]”

De modo semelhante a literatura, a verdadeira literatura, gradualmente se extingue de nosso presente.Talvez como conseqüência da cultura de massa, o gosto pela leitura diminui cada vez mais, ou restringe-se à nojenta literatura comercial da atualidade – que, inclusive, é produzida de modo a se encaixar nos gostos da juventude.Nas livrarias tradicionais é difícil encontrar grande número de obras de ganhadores do Nobel; em contrapartida, encontramos facilmente “importantes” livro dos famosos “youtubers”, jovens adultos que se filmam fazendo palhaçada e escrevem a biografia de seus longos 19 anos de vida – e figuram entre os mais vendidos.

Se em Admirável Mundo Novo as pessoas são privadas dos livros, e em Fahrenheit 451 todos os livros são queimados a fim de evitar que as pessoas obtenham “conhecimentos perigosos para manter a sociedade em seus moldes”, em nosso tempo nada disso é necessário: dado o ponto ao qual chegamos – e ao qual chegaremos –, os livros não oferecerão mais risco, pois o leitor estará tão futilizado e acostumado à escrita mediana, que se quer compreenderá a complexidade de obras antigas.

Huxley acreditava que era necessário também um controle de natalidade eficaz (uma dessas preocupações malthusianas da época). Quanto a isso também se equivocou: uma ampliação em métodos contraceptivos reduziria a quantia de consumidores, e a ditadura do consumo seria danificada. Tanto melhor que o crescimento populacional prossiga livremente. E por que deveriam aceitar uma lei que permite uma mulher cometer o pecado de abortar consumidores vidas?

Examinemos a lógica de Admirável Mundo novo e comparemos com a realidade: para manter certa condição social é necessário manter os escravos felizes, e o consumo proporciona isso. É preciso manter o consumo, e o estado o faz produzindo indivíduos que continuem consumindo – e suscetíveis a sua propaganda política – mesmo que para isso seja necessário que estes indivíduos sejam produzidos da maneira mais estereotipada e intelectualmente frágeis possível. Não são necessários os “centros de condicionamento pavloviano”; as próprias escolas públicas se encarregam disso.

Em suma, não estamos próximos de uma era em que a comunidade cientifica domina a tudo e a todos.Estamos caminhando para a ditadura perfeita, onde se quer percebemos quem nos controla, pois os métodos empregados não nos induz a agir de modo especifico através da ameaça de privação ou punição, mas sim nos recompensando, distraindo e mantendo contentes – e iludidos. É muito mais fácil identificar quando somos controlados por coerção. Sentimos-nos “presos” quando algo nos impede de agir; contudo, quando nada nos impede, e nos compensa por agir de certa forma – e não de outras –, dizemos que “somos livres”.

A questão da liberdade


O autor enfatiza que todos são pré-destinados por meio de condicionamentos, entretanto, não enfatiza se os mesmos acreditam-se “livres”. Tal crença, a ideia de que cada um é livre e de que é dele mesmo que se origina o próprio comportamento, é extremamente necessário para manter o controle numa semelhante ditadura do consumo em cujos escravos são felizes. As pessoas precisam acreditar-se livres; precisam acreditar que são completamente livres e que causam seus próprios comportamentos, embora diversas agências sejam as responsáveis pelo ambiente em que se comporta. A meritocracia, que no cenário brasileiro vem ganhando força, é a ideologia que melhor contribui para manter os escravos alheios à dominação exercida. 

A crença na liberdade e na completa responsabilidade pelo seu lugar na hierarquia social é uma ilusão muito confortável para o indivíduo, e mais ainda para os controladores: acreditando-se livre, ser gratificado pelas recompensas é possível (e este prazer ninguém quer abnegar)–simultaneamente, nega-se o papel do controlador, mesmo pelas misérias recebidas. B.F Skinner esclareceu eminentemente isso em Beyond Freedom and Dignity, e enfatiza: “[...]O controlador só pode escapar da responsabilidade se puder manter a posição de que é o próprio indivíduo que está no controle[...]”. No mesmo livro, afirma que “[...]o escravo precisa ser consciente de sua miséria, e a verdadeira ameaça é o sistema de escravidão tão bem planejado de modo a não gerar revolta[...]”

O controle

O pesadelo que Admirável Mundo Novo representa aos leitores não consiste na questão do Controle. O problema não é o controle, pois o mesmo é um fato, e como tal, dele não estamos livres; o problema é como o controle é exercido, e quais seus produtos. Na ficção, a busca da estabilidade levou a uma humanidade feliz, porém inócua, com homens ocos, vazios, superficiais e idiotizados – um sonho em tons de cinza. No mundo real, embora nem todos estejam sendo beneficiados, a grande massa está cheia de seus contentamentos, e também cada vez mais inócua, vazia, superficial e idiota. 

Por outro lado, é mais trágico ainda porque o vemos através das crenças da nossa época: acreditamo-nos livres, responsáveis pelo que fazemos e preservamos ainda muitos dos hábitos desenvolvidos culturalmente – que, no romance, foram extintos. Contudo, os cidadãos do ano de 600 d.F possuem a mesma sensação de liberdade, estão tão habituados e felizes com seus costumes, e nossa cultura lhes seria tão absurda quanto a deles aparenta ser para nós. Semelhantes a eles, também nosso comportamento é influenciado por agências de controle a fim de manter uma particular “condição”, as castas organizadas e o consumo rodando. E se quer estamos constantemente cientes disso.

Nossa atual civilização não é cientificamente planejada como em Admirável Mundo Novo, e ainda assim o controle continua sendo exercido, de modo trágico, mas eficiente para continuar funcionado. Conseqüentemente, estamos cheios de problemas: há pessoas infelizes, suicídios, há violência e estupros, danos ao meio ambiente, pobreza, gente morrendo de fome e muitas outras misérias – e temos também uma massa alheia a tudo isso. O consumo prossegue e o mundo declina. Não será, contudo, convicções ideológicas ultrapassadas e falhas assentadas em concepções imprecisas acerca do homem e do mundo – não será a esquerda nem a direita que solucionará isso, tampouco protestar contra os controladores sem nenhuma alternativa melhor.

Enquanto permanecermos preso, às gratificações imediatas, ao conforto absoluto e ao prazer superficial, continuaremos caminhando rumo a um destino lamentável, e quando o homem perceber isso, aí já será tarde demais.

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Referências:
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo.São Paulo: Globo, 2014.
SKINNER, Burrhus Frederic. O Mito da Liberdade. São Paulo: Summus, 1983.



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