16 janeiro 2016

A Gata Preta - Conto


Um projeto de literatura patológica
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Quem me dera houvesse pertencido àquela classe de escritores que dominam a habilidade de navegar nos mares da fantasia e retornar sãos com suas estórias de baixo do braço; para minha desgraça, o destino reservara o contrário. Talvez tenha sido por imposição divina ou acidente do acaso que, infelizmente, me alinhei à outra estirpe de artistas: os "aqueles", os "perturbados", os maus vistos – os esquecidos . São estes homens que, ao contrário do primeiro tipo, sucumbem a um mundo distorcido no qual é impossível distinguir a fantasia da realidade, a verdade da mentira, a lucidez da loucura, o sonho do delírio; estes pobres infelizes conseguem até viver em paz durante um tempo, mas inevitavelmente, em algum período da vida, se envolvem numa cadeia de eventos  que resultarão em nada mais do que a auto-destruição. Esta classe de seres à qual lamentavelmente pertenço não chegam à morte com estórias de baixo do braço, glórias ou status, muito pelo contrário; vossa vida se finda na amargura e no desespero, e se deixarem algum escrito fantástico para trás, tratar-se-á muito antes de palavras sinceras de uma vida miserável do que produção fictícia digna de ser lida. E é exatamente este tipo de escrita que preencherá as linhas seguintes.

Enquanto ainda me restam poucas parcelas de lucidez, tentarei transcrever da maneira mais fiel, concisa e direta possível esta pequena história a cerca dos acontecimentos do último mês – Ou seria melhor dizer, esta pequena confissão? Nesta altura, pouco importa. Meu único intento ao empregar as poucas forças que me restam nestas palavras é permitir que minha família veja de outra maneira, que não a evidente, este trágico acidente; diminuindo, com isso, o desgosto mortal pela minha vida – que ao termino do último parágrafo encontrará seu fim no fio da navalha. Que a ciência psiquiátrica encontre explicação para isto, ou que a misericórdia do chamado bom Deus me absolva do pecado.
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Iniciou-se há cerca de um mês; havia chegado tarde do trabalho quando, ao atravessar a porta de entrada, a vi pela primeira vez: inerte como uma sombra felpuda, uma gata completamente negra dormia sobre o sofá da sala. Ao bater a porta às minhas costas a criatura despertou subitamente, revelando imensos olhos amarelos que foram de exato encontro aos meus; olhos tão assombrosamente amarelos e redondos que a exata descrição me parece impossível. Mais que isso... Havia naqueles olhos felinos algum tipo de magia sinistra que criatura viva alguma possuía: ali habitava a maldade, a perversão, o terror, o sofrimento, devassidão, podridão e ódio; via-se também no vazio negro de tua pupila algo muito similar à aparência das noites sem lua, enquanto o amarelo mórbido de tua íris, em contrates, parecia refletir toda putrefação, imoralidade, pecado e decadência do homem. 

Ah! Sei bem que pareço exagerado, mas posso jurar que no momento em que encarei aqueles olhos fui tomado por alguma espécie de delírio hipnótico, no qual todo tipo de pensamento inaceitável e indecente desfilou caoticamente em minha consciência: desejos pecaminosos, incestuosos, assassínios, sádicos; e, ao mesmo tempo, o medo do desconhecido, o pânico, o horror à vida, agonia e a angústia. Eu estava absorto e confuso perante as coisas tais jamais antes experimentadas, que aquele breve olhar esmagador provocava; o olhar da gata preta desconhecida que jazia em minha sala. Com efeito, foi ali que tudo começou (agora compreendo) – foi naquela noite que minha lucidez iniciara sua queda.

Se me vi profundamente afetado pela criatura, a criatura, por outro lado, nada pareceu importar-se comigo: como se minha presença não passasse de um empecilho, cerrou os olhos e voltou à posição em que dormia. Foi só assim que consegui voltar à realidade, e tão logo corri nervoso para a cozinha, onde me sentei desesperado, mas profundamente aliviado por abandonar aquele ambiente no qual a existência do felino tornava a atmosfera tão densa e ofensiva. Ali, minha irmã – na casa da qual, junto de seu marido, residia eu temporariamente –, preparava a mamadeira para seu bebê, Lara, e ao notar minha presença tentou puxar assunto, mas eu ainda estava estarrecido pelo que me ocorrera e queria apenas saber a respeito daquele animal; com isso, minha irmã explicou que a encontrou na porta de casa, e que se apresentou tão amável e carinhosa que decidiu ficar com ela. “Chama-se Preta” – assim disse minha irmã.

Passei o resto da noite me questionando a cerca do que teria sido aquele acontecimento, aquele choque inicial. Era-me impossível aceitar que um animal tão medíocre, tão inofensivo como uma gata houvesse causado, em minha própria casa, todo aquele estranhamento, medo e desconforto. Entretanto, após algumas distrações virtuais, como todo bom ser humano costuma fazer, a ideia já não me perturbava tanto, e atribui tudo o que me ocorreu à falta de sono, ao stress e o cansaço de mais um dia de trabalho. “Vou dormir e amanhã estarei brincando com ela”, assim pensava, “Como sou ridículo... esquentando a cabeça por se assustar com um gato”. Convenci-me de não ser nada de mais. Infelizmente, eu descobriria logo que estava profundamente enganado.

Naquela noite, após atingir os mais profundos níveis do sono, a criatura me apareceu em sonhos. Ah... Quem me dera pudesse esquecer aquele pesadelo terrível; infelizmente, ele permanece intacto em minha memória: cada segundo, cada detalhe, recordo-me com uma indesejada perfeição; talvez não só pelo seu elevado nível de realidade, como também por haver se repetido numerosas vezes posteriormente. Em tal sonho, eu estava completamente imobilizado num quarto todo branco diante a gata preta; a gata, por sua vez, derramava sobre mim aquele mesmo olhar com o qual me saudara na sala, entretanto, naquele estranho ambiente onírico, sua presença se fazia muito mais densa do que na realidade... Não, não era simplesmente sua presença, era algo a mais... Era como se algum tipo de energia sutil irradiasse de seu corpo negro e me envolvesse por inteiro: aquela energia ignota que provinha da existência onírica da gata penetrava lenta e profundamente cada poro de minha carne, tal como agulhas gélidas, até atingir o cerne de minha alma. Além disso, a cada segundo transcorrido o animal maldito aumentava de tamanho, e, na medida em que a incandescência amarela dos discos de tua íris se tornava igualmente maiores e mais brilhantes, a sua face assumia formas bizarras e disformes; seu focinho, seus pêlos, a carne rosada de sua orelha: neles já não se via partes de um animal, mas sim formas indistintas e abstratas, rabiscos negros suspensos no éter. Em minha visão, já não se distinguia forma alguma, tampouco sobraram vestígios do quarto branco em que me encontrava. Como se a gata se estendesse ao todo, me vi envolto num vácuo agonicamente insuportável, cuja única visão possível era os olhos amarelos da gata suspensos como dois pêndulos à minha frente. A sensação era terrível; do inicio ao fim era o medo que me dominava, que corria em minhas veias, e por mais que eu tentasse cerrar os olhos me era impossível, se quer tremer eu conseguia. A única coisa que fazia algum movimento em meu corpo era o coração: batia ferozmente contra a carne do peito, tal como após horas de corrida. Meus olhos queimavam e sentia que meu coração iria explodir, até que, no ponto mais alto daquele sonho maldito, no momento em que toda a minha alma era sugada pelos olhos amarelos diante de mim, meu coração cessou subitamente o ritmo, retornando ao habitual; os olhos gigantes sumiram, e sobrou apenas a escuridão a minha frente: eu havia acordado.

Por longos minutos não preguei os olhos naquela noite. Estava ainda tomado pelo efeito do pesadelo, e posso jurar que, naquele momento de reflexão, no fundo negro do teto escuro, era possível ver, entre um pestanejar e outro, uma forma vagamente espectral, dir-se-ia alucinatória, dos olhos amarelos da gata preta. Ainda assim, tentei dormir novamente; tentei ao máximo, mas cada vez que pregava as pálpebras, a imagem do animal me voltava à cabeça, e junto dela, toda a sensação de pavor. Levantei-me de meu leito – “talvez tomando alguma coisa eu consiga dormir” – assim me dizia. Estava completamente alheio à realidade, ainda imerso nas recordações penosas do sonho, quando abri a porta e senti um gélido arrepio subir do cóccix ao pé da nuca: ali, exatamente à minha frente, no exato local onde a luz de meu quarto lançava uma débil claridade através da porta semi-aberta, a iluminar o corredor, jazia ali, como uma estátua, a gata preta, me encarando como no sonho. E aqueles olhos – eram os mesmos olhos do sonho, os mesmos olhos oníricos, espectrais e malignos que em pesadelos me torturaram –, permaneceram encravados em minha alma. Naquele instante tétrico em que o animal me pegou desprecavido uma idéia se surgiu sobre o que estava ocorrendo: a gata preta aguardara aquele momento durante toda a noite, na entrada de meu próprio quarto, para capturar-me; ela havia arquitetado tudo.

Tranquei apressadamente a porta do quarto e enfiei-me debaixo das cobertas, infelizmente, sem um segundo a mais de sonos. O dia amanheceu pesado sobre minha cabeça, e mesmo mal disposto e sob efeito das lembranças da noite, me convenci de que não podia deixar este problema atrapalhar meus deveres: faculdade e trabalho. Infelizmente, na pratica, não foi tão fácil...

Já naquele primeiro dia não consegui prestar atenção nas aulas, (o que logo se tornou hábito), e no trabalho me era difícil realizar as tarefas sem distrair-me em devaneios acerca da gata. Eu estava imerso em dúvidas, em deduções fantásticas sobre os acontecimentos: Qual seria a origem daquele animal?Seria algum tipo de criatura sobrenatural?Um demônio?O que ele pretendia fazer comigo?Teria a gata Preta algum tipo de poder sobre meus sonhos? Eu sabia que perguntas como estas eram ridículas por sua impossibilidade, mas surgiam involuntariamente, como que se o desespero perante a ausência de explicação racional me levasse ao caminho da fantasia. Suposições como estas se tornaram cada vez mais freqüente, principalmente nos restantes de madrugadas mal dormidas; poder-se-ia tecer imensas teses acerca das idéias fantásticas que em mim brotavam. Contudo, pensamentos como estes só me eram possíveis fora de casa, na faculdade ou trabalho, pois em casa, pela noite, aquilo que ocorreu no primeiro dia em que vi a gata logo se tornara rotina; era sempre a mesma coisa: eu atravessava a porta da sala, a criatura sobre o sofá me saudava irônica com aquela expressão que aos meus olhos era um terror, e eu, como um fugitivo, me trancava em meu quarto e tentava descansar, sempre fugindo do contato direto com o bicho. Estava sempre tomado pelo medo e pela insegurança, de maneira que era difícil concentrar-me em ler um livro ou navegar na internet, afinal, se lá fora eu estava livre para pensar na gata, dentro de casa era preciso preocupar-se com o que pode ocorrer estando sob o mesmo teto que a gata.

Dormir também se tornava, gradualmente, um desafio. As lembranças daquele primeiro sonho sempre me visitavam mais intensamente quando encostava a cabeça no travesseiro, e, se eu conseguia cerrar os olhos, aquelas mesmas lembranças tornavam-se reais em sonhos: O pesadelo sempre se repetia, na mesma seqüência e ordem; o quarto branco, a energia envolvente do gato, a escuridão, os olhos amarelos me devorando, meu coração prestes a explodir, e, por fim, o despertar. Tinha a impressão, aliás, de que na medida em que se repetia tornava-se também mais real, mais intenso – mais perturbador. Como solução, passei a programar meu despertador para que tocasse periodicamente após o horário em que me deitava, de maneira que interrompesse os estágios do sono antes mesmo de atingir a etapa na qual o sonho ocorre. Desse modo, segundo minha lógica, seria possível, em curtos intervalos, repousar sem sucumbir aos efeitos da gata preta. Com o tempo, infelizmente, esta minha estratégia se mostrou ineficaz: o sono caia pesado de maneira que despertador algum o interrompia, ou a gata surgia em minha consciência em sonhos breves. Não tive escolha... Aos poucos a própria conseqüência do sono me condicionou a evitá-lo; eu me monitorava a fim de evitar dormir, evitava ao máximo me deitar na cama ou repousar. Tornei-me deveras um fugitivo do sono, e o mesmo tornou-se algo cada vez mais raro e indesejado. Não... Não se tratava de uma simples insônia nem de uma perturbação do sono como conhecem popularmente; era um tipo de condicionamento aversivo ao sono em função de seu resultado particular: enquanto uma parte de meu cérebro ansiava o repousar, outra repugnava o simples ato de fechar os olhos em virtude do terrível inferno onírico que viria depois.

Aquilo que minha rotina se tornava estava me matando; o pavor inexplicável sob o qual eu me via constantemente afetado, o temor em cruzar com o animal, a falta de sono, as conjecturas ilógicas e as imagens sinistras que brotavam em minha cabeça pela madrugada: tudo isso contribuía para um desejo de isolamento, de afastar-me das pessoas; um desejo realmente inexplicável. Já não era apenas a gata que me perturbava... Não, não era – era algo que a gata implantara dentro de mim que se desenvolveu e tomava proporções estranhas.

Ao fim de duas semanas e meias eu já desconhecia qual era o conforto do sono, tal como qual era meu modo de agir e pensar antes de tudo aquilo, e confesso que, estranhamente, encontrei certas ocupações para os momentos noturnos nos quais eu deveria estar dormindo. Em minha escrivaninha, entre as várias canecas de café pela metade e latas vazias de energético, eu passava horas e horas desenhando compulsivamente as imagens mórbidas que surgiam na tela mental; havia de tudo: rabiscos de olhos felinos, pequenos órgãos, silhuetas felinas contra a lua, a própria gata preta, os olhos amarelos da gata, eu e a gata, a gata me perseguindo, eu perseguindo a gata, seus dentes, seu focinho e sua boca; tudo isso surgia assombrosamente em minha consciência, e eu me via obrigado a transcrevê-los em meus cadernos, caso contrário, me oprimiam ferozmente. Ali, isolado em meu quarto, era quase possível sentir-me “seguro” como quando eu estava na rua, na universidade ou no escritório, entretanto, eu bem sabia que a gata preta continuava a me esperar lá fora, além da porta, talvez no sofá, na sala branca do reino do sono.... Sim, eu estava bem ciente que estava apenas me distraindo, que desenhar era apenas uma distração, uma maquiagem para o medo, uma maneira de torná-lo mais suportável; assim caminhava na superfície da vida: perturbado, insone, sob a sombra do horror; sempre em fuga daquelas sensações indesejadas que o olhar e a presença da gata poderiam me provocar.

Foi também por volta deste tempo que minha irmã, junto de sua filha e marido, anunciou que viajariam a fim de visitar um parente enfermo. No estado em que me encontrava, confesso que pouco me importei em saber qual parente estava adoecido, quando elas voltariam ou não. A única coisa que surgira em minha mente ao receber esta noticia foi a consciência de que eu ficaria sozinho(o trabalho e a faculdade tornavam inviáveis qualquer tipo de viajem) em minha casa com a gata preta, e isso era um sinal de que as coisas poderiam piorar.E, realmente, pioraram.

Nos primeiros dias da ausência de meus familiares as coisas pareciam continuar na mesma, porém, aos poucos foram mudando. Se eu saia de meu quarto, mesmo que brevemente para ir à cozinha ou ao banheiro, a criatura passava como uma sombra silenciosa por mim: corria de algum canto desconhecido para o outro, por baixo de meus pés. Quando não a via, por outro lado, era possível sentir que me observava de algum local oculto; era possível sentir seu olhar assassino devorando cada um de meus movimentos, à espera do momento ideal de me atacar. Pode parecer algum tipo de loucura, mas não é, eu juro!Eu sentia mesmo, sentia-o na minha nuca, no meu ventre, no meu pescoço, atrás de mim... Eu tenho certeza que era possível senti-lo!Ficava cada vez mais claro que aquela criatura tinha suas raízes no mal, no verdadeiro mal, e que viera das trevas para me perturbar! Eu dava cada passo com extremo cuidado, olhava várias vezes para cada direção ou locais em que poderia existir a mínima das possibilidades da criatura estar enfiada, à espreita. 

Fora de casa, em certas ocasiões, me recordo de acabar me distraindo e pregando os olhos por curtos períodos de tempo, como no transporte público, durante a aula ou qualquer outro momento em que minha mente se esvaziava. Era a privação do sono que se fazia mais cruel, e, ao invés destes pequenos acidentes me trazerem o descanso, abriam brechas para que a gata preta invadisse minha psique. Era horrível... No metrô, ao cair num cochilo, logo surgia a gata preta a me esmagar com seus olhos; eu despertava aos gritos, causando repulsa e estranhamento nos passageiros. Por minha vez, muito antes de constranger-me perante as expressões de desaprovação e desprezo, me sentia desesperado e menos seguro, afinal, aquilo indicava que também fora de casa a segurança diminuiu. Isso não me deu escolha a não ser dobrar as doses de estimulantes lícitos que consumia diariamente: cafeína e energéticos eram consumidos tal como água em meu dia-a-dia; energéticos mais constantemente nas ruas, e o café quando dentro de casa.

A gata investia cada vez mais pesadamente contra mim. Durante as madrugadas, em que o desenho e a escrita se faziam cada vez mais constante, como válvula de escape da pressão em minha mente, a gata não só arranhava como também miava a noite toda em minha porta. Mas aquele miado não era um miado normal para gatos ou gatas, era um miado diabólico, um som estridente, fino e intenso; um barulho muito semelhante ao do choro de uma criança que padece em agonia, desolada. Com efeito, havia naquele miado perturbador toda a maldade dos infernos concentrada nas cordas vocais de uma criatura amaldiçoada, cujo único intento era tirar-me a lucidez! Eu diria que a intensidade das impressões que provocava o miado da gata em muito se assemelha às que resultam da contemplação de seus olhos, mas..., eu falho... Palavra alguma seria capaz de descrever com precisão a essência daquele miado.

O havia penetrado profundamente em minha cabeça; tornar-se-ia, a partir de então, mais um tormento constante. É digno de nota que, por diversas vezes, estive a ponto de explodir, e em certas ocasiões, gritava contra o animal, mandava-a embora, como um louco mesmo. E mesmo após os meus gritos, ouvia como se ela batesse punhos em resposta, em minha porta. Era impossível conter o medo e o espanto, então me calava até que cessassem os barulhos. inexplicáveis. Ao nascer do sol restava apenas o silêncio, e, lá longe, talvez não em realidade, mas apenas em minha conturbada mente um vago eco do insuportável miado.Permanecer em casa era cada vez mais difícil...

As perturbações tornaram-se cada vez mais freqüente com o passar do dias; começaram a me perseguir em qualquer lugar fora de minha casa, e o pior de tudo: mesmo acordado os gatos apareciam para mim– Aquilo que me perseguia em sonhos conseguira enfim invadir os domínios de minha realidade desperta. Inicialmente, era como vultos, isto é, apareciam solidamente e tão logo desapareciam; eu piscava ou olhava de relance para algum canto e lá estavam eles, os gatos: um felino negro ao pé do poste da esquina, olhos amarelos brilhando dentro de uma lixeira, patas de gatos para fora dos bueiros... Eram todos negros os felinos das aparições, e tal como a gata, todos com aqueles mesmos olhos amarelos. Estavam em todo lugar. Embora as visões fossem breves, me deixavam apavorado, e eu me via obrigado a dar cada passo com o máximo de precaução.

Nas antigas estações desativadas pelas quais passava de trem pela manhã, a caminho da faculdade, também lá os via: gatos negros de todos os tamanhos em cima e entre os buracos dos muros quebrados, sentados nos bancos velhos, por trás do capim raso que crescia entre as fendas do concreto velho; sempre observando, sempre me observando. Eles sempre estavam lá: vários pontos – a cada dia aumentavam em número – escuros na claridade esbranquiçada das estações em ruínas; eu os via bem, lá fora, pela janela do trem... E sei também que eles me viam... com certeza, eu era o único que os via...

Nas grandes multidões a coisa era pior, era muito pior!Era impossível reprimir o desespero. Todos ao meu redor pareciam me encarar, eles me observavam; observavam-me com os mesmos olhos da gata preta, com os mesmos olhos amarelos de desprezo, soberba e zombaria... Os olhos nos quais se encerra toda podridão, perversão e horror da humanidade – sim, eram estes olhos pregados nos rostos de todas as pessoas da rua! Olhavam-me, piscavam os olhos, e seus olhos já não eram da mesma cor; oscilava a íris de seus olhos entre o castanho, o negro, o verde e por fim aquele amarelo podre; sempre terminavam lançando aqueles olhos da fera sobre mim. A sensação era horrível. Eu corria entre a multidão, fugindo para locais desérticos longe daquela gente. Também dentro dos veículos, nas vitrines das lojas, até mesmo no restaurante... Os gatos apareciam por todos os lados.

Estes delírios se tornavam cada vez mais freqüentes e intensos, cada vez mais perturbadores e sinistros, de maneira que culminou no meu total declínio, há pouco mais de alguns dias... Não sei dizer; não sei se foi a privação do sono, as altas doses de estimulantes à base de cafeína e taurina e a rotina sem descanso que resultaram na última seqüência de acontecimentos de minha vida, a única coisa que posso afirmar é que a partir do ponto em que entrarei agora não sou mais capaz de distinguir o que vivi em realidade, do que vivi em delírios, isto é, os fatos das alucinações. Minha mente me engana...

Antes de amanhecer aquele dia, eu já não agüentava mais manter-me acordado; havia misturado todo produto que eu acreditava serem capazes de impedir meu sono: energético, refrigerante de cola, café, chá; todos os líquido,, bebi numa só mistura. Já não sentia mais o gosto, o que importava era o efeito. Também tomei alguns remédios (nada de novo em minha rotina) que auxiliam a manter a consciência desperta; algo comum entre os estudantes. Foi a partir deste ponto também meu quarto deixara de ser um local seguro: à minha volta, os gatos começaram a aparecer; em baixo da cama, entre o cobertor, no vão do guarda roupa. E eles miavam, miava tal como a gata preta lá fora!Até meus desenhos, meus próprios desenhos os quais eu havia acabado de findar, eles próprios ganhavam vida e começavam a sair do papel, miando, em minha direção. Eu não conseguia acreditar... Desesperado e tomado por uma energia instintiva de preservar minha própria vida, vesti-me apressadamente e corri por entre as criaturas negras que se desfaziam como lama molhada entre minhas pernas; corri de minha casa sem se quer olhar para trás, eu precisava encontrar um local seguro.

Ao chegar à universidade – o único local que consegui pensar – estranhei que a aula já houvesse começado, tal como o fato de perturbação alguma haver aparecido durante o trajeto. “Minha casa já não é segura”, “ela está em todo lugar”, “para onde irei quando chegar a noite”, “ela espera que eu durma” – Tais eram os pensamentos em que eu estava mergulhado, em pânico, enquanto o professor ministrava sua aula. Eu não prestava atenção... Infelizmente eu não prestava atenção, mas quando prestei, dei-me conta que não era uma voz humana que saia de sua boca, não: o professor miava, miava como um gato – miava como a gata preta. Como num susto, senti novamente aquele pavor se agitar em meu estomago, e, ao olhar para trás para constatar a reação de meus amigos perante aquela anormalidade, outro choque: todos eles, lá atrás em suas cadeiras, sustentavam grandes cabeças felinas no alto do pescoço; cabeças felinas e olhares amarelos (como o da Gata). Não parecia um delírio como os quais eu estava habituado, era muito mais real... E o pior, não era breve, eles continuaram mesmo após eu fechar os olhos e olhar pra outras direções. Corri desvairadamente para o banheiro, e também atravessando o corredor vazio eles estavam lá; os gatos colocavam suas pequenas cabeças para fora das salas e corriam em disparada diante de mim. “Eu preciso sair daqui”, assim pensava “este local é perigoso”. Tomei o elevador para o térreo, e foi lá que vi o horário: 07h10min – Ainda faltam 50 minutos para começar a aula – pensei alto – O que eu estava fazendo na sala? Naquele momento, já não tinha mais dúvidas: eu havia ficado louco. 

Passei todo aquele dia caminhando pensativo pelas ruas da cidade, sempre fugindo das visões delirantes que surgiam ao acaso diante meus olhos e com a sensação já habituada de estar sendo perseguido ou observado de longe; conseqüentemente, faltei ao trabalho. Eu já não sentia tanto medo ou pavor, mas antes completamente vazio. A gata... Não, os gatos – pois já não era apenas um, era uma força inteira – haviam sugado tudo que eu possuía; minha vida tornara-se apenas medo, angústia e delírios. Foi nesse contexto que algo começou a brilhar dentro de mim, um pensamento “Como pude deixar que aquele animal fizesse isso comigo?” e tão logo tomou força – “Devo por um fim nisso... matarei a gata preta.

Uma vez com esta vontade firme, voltei para a casa já sem medo, apenas com o intento em mente. Eu nem havia percebido o as horas passarem; aliás, quando se fica tanto sem dormir, o tempo passa a organizar-se a sua percepção de maneira alheia à convenção dos homens. É digno de nota que desde que formulei minha vontade de por fim na vida da gata preta, as alucinações se reduziram, de maneira que restou apenas a sensação de perseguição – mas a esta eu já estava habituado.

A casa estava quieta; quieta e segura de mais para ser verdade, e a gata nem dava sinal. Cruzei a cozinha a sua procura, mas nada: o ambiente deixara de apresentar aquela sensação densa e abafada de quando ela está no recinto. Também nos cantos escuros não havia seus olhos amarelos a me perseguir, como sempre fazia. Aproveitando a situação, peguei a faca de churrasco, a mais afiada que encontrei, para realizar aquele desejo que me habitava. O simples toque em seu cabo fora capaz de estimular o desejo assassino que vibrava de meu coração para os braços e pernas; a mera apreciação do fio de sua lâmina, a refletir meus olhos cansados, evocava devaneios perversos a cerca do ato que tinha em mente: naquele momento, eu conseguia visualizar perfeitamente a faca penetrando em sua barriga, cortando-lhe as patas, arrancando-lhe o nariz... Ah! Confesso que senti um profundo êxtase naquele com a arma na mão e o objetivo na cabeça; e confesso também que nunca antes em minha vida me senti tão disposto a ferir um ser vivo! Com efeito... Aquela pulsão me dominava aos poucos, e logo nada mais havia em minha cabeça senão dilacerar o corpo inteiro da gata.

Sutilmente, um som quase inaudível quebrou o silêncio ermo da madrugada; embora muito baixo, eu sabia bem o que era: o miado da gata preta. Aumentava gradualmente, a ecoar em minha cabeça num som longo e agudo, entretanto, parecia impossível encontrar sua fonte, como se o som não tivesse origem física, como se não fosse nada além de mais um delírio – mas afinal, o que até agora não foi, realmente, um delírio? Procurei pela casa toda; na sala não havia nada, nem no quarto de minha irmã, em meu próprio quarto ou nos banheiros. 

Ao entrar no último cômodo que restava, embora ainda o som continuasse parecendo provir de alguma outra local, tive certeza de que ela estava ali, no quarto de Lara, minha sobrinha: pairava naquele ambiente a mesma atmosfera onírica, pesada, sombria e mórbida na qual confrontei tantas vezes a gata em sonhos. Bastaram alguns passos para dentro do ambiente para vê-la: Em contrastes com a mobília branca, lá se via a figura negra; zombeteira como sempre, deitada dentro do berço de Lara; com aquele mesmo olhar, mostrando de tempo em tempo a língua rubra ao miar – estava na hora de finalizar aquilo. 

Até pensei em tirá-la de dentro para não sujar os pertences de minha sobrinha, mas não havia tempo para pensar; além disso, ao encarar novamente aqueles imensos olhos amarelos dos quais fugi o mês inteiro, aqueles olhos redondos e perversos que por tanto tempo tornaram minha vida uma lástima e que agora estavam ao meu alcance em carne e osso, o ímpeto e o desejo de vingança me impeliram com uma força irracional, irrefletida para cima da criatura. Agarrei-a pelo pescoço com a mão esquerda, virando-a de barriga para cima, enquanto com a outra desferia os ataques; o primeiro naquele ventre macio e peludo já liberou o melado, depois mais um, mais um e mais um; rompia-lhe as entranhas, encravava a lamina e puxava de um lado para o outro só para sentir seu tecido rasgando, liberando toda aquela mistura viscosa de sangue, carne e outras substâncias orgânicas que sequer sabia o nome – era prazeroso ouvir o som de carne viva e órgãos virando uma só massa pastosa. Sempre a encarando, sempre com os olhos encravados naquele amarelo que morria aos poucos... era belo ver a maneira pela qual se arregalavam de dor e asfixia, quase escapando das órbitas negras lubrificada por algo como lágrimas. A gata já não miava, parecia aceitar seu destino; sofria em silêncio.

Não é possível explicar com precisão a intensidade do êxtase que me preenchia ao liberar daquela maneira brutal os instintos mais primitivos que emergiam de minhas trevas; sem dúvidas, aquela energia sempre esteve aqui dentro, aquela tendencia à selvageria, sempre domesticada, restringida, e ao mesmo tempo à espreita de alguma falha para vir à luz. Naquele instante, tudo quanto havia de mais brutal, desumano, perverso, cruel, frio, agressivo e – dir-se-ia do ponto de vista do homem civilizado negador de tal natureza – decadente dentro de mim, era completamente liberado no esfaqueamento frenético contra a gata preta... E o prazer era incrível – Ah! Ao descrevê-lo,agora, ainda consigo senti-lo....

Tal como o êxtase, a paz que me invadiu, ao fim do trabalho, não cabe em palavras. Vi meu trabalho, o corpo aberto do gato derramando sangue por todo o berço, suas vísceras todas para fora, seus pêlos molhados de sangue e seus olhos ainda abertos, agora amarelos sem vida, como se continuasse a me encarar. Ah! Aquele olhar morto, aquele último olhar que me lançou já não me provocava aversão ou angústia; uma vez liberado tudo aquilo que me estimulava, eu conseguia contemplar calmamente satisfeito aquela criatura. Aquela visão dizia: “Olhe, você me matou; com suas próprias mãos matou a fonte de seu medo. Com sua selvageria liberada, matou a fonte de seu medo.” E realmente, tudo o que aquilo me dizia, simbolicamente, era real; já não me sentia mais louco, delirante, irreal: ao matá-la, matei também aquilo que me perturbava, e todo o efeito de sua existência chegou ao fim.

Com toda tranqüilidade do mundo, arrumei tudo na mais perfeita ordem; enfiei o corpo, junto das roupas de cama sujas, num saco e o jogue no local habitual para lixo no pátio de casa, coloquei panos novos no berço de Lara e limpei todo o sangue do chão e da faca; tudo estava na mais perfeita harmonia, e eu estava certo de que ser vivente algum diria que houve tal ato infame naquela residência, tampouco haveriam de julgar alguém com a minha boa aparência de ser capaz de maltratar um animal. Quanto ao corpo da criatura, eu me encarregaria pela manhã de despachá-lo, e quando meus familiares voltassem, diria que fugiu ou algo do tipo. Ao termino de tudo, senti que poderia em fim dormir tranqüilo, pois a raiz do mal fora cortada e junto dela todo o efeito que pudesse exercer em meus sonhos. Com este pensamento, me deitei confortavelmente, por volta das 3h00, e esperei o sono chegar.
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Despertei há pouco mais de 1h; tudo ocorreu muito rapidamente, de maneira que grande parte do tempo transcorrido de meu levantar até o ocorrido e o momento atual, foi dedicado à escrita desta carta.Só tenho a dizer que estou transtornado... Confuso, arrependido. Desde que abri os olhos não consigo pensar em outra coisa se não em compreender qual foi o dia, o momento, o evento exato que demarcou a completa cisão, ou identificar o que realmente vivi do que delirei...

Eu não sonhei, eu não sonhei com nada nem tive pesadelos. O que me acordou foi o miado da gata. Eu sei, achei impossível na hora... Assim que me levantei, andei pela casa em busca de respostas. Foi então que me deparei com o primeiro choque: eu não estava sozinho. Não sei como não reparei antes, mas o sofá que eu não usei estava desarrumado, tal como havia louças sobre a pia que não foram sujadas por mm. Foi só olhando de quarto em quarto, já por falta de opções em o que fazer em tal ocasião, que vi que minha irmã se encontrava em seu quarto, dormindo ao lado do marido. Eu não consegui acreditar que ela pudesse ter chegado tão cedo em casa, naquele curto período de tempo entre a morte da gata e o atual momento. “Que horas você chegou?!” eu perguntava a chacoalhando bruscamente, tentando acordá-la “Que horas você chegou?”. Minha irmã parecia não entender nada, e mesmo assim eu a questionava “Que horas vocês chegaram da viajem? Quando eu fui dormir vocês não haviam chegado”, eu repetia desesperado. Creio que ela enfim havia distinguido minhas palavras quando respondeu – “Que diabos você está falando? Não viajamos para lugar nenhum; agora deixa dormir em paz!” – e como se indignada, porém já desperta, completou num sussurro sério – “Já cansei de bater na sua porta de madrugada para você parar com suas loucuras e gritarias; ele já está irritado com sua barulheira, vê se fica quieto pra não acordar ninguém! Se Lara começar a chorar...” – Ao fim de sua última palavra eu já não escutava mais nada.

Com muita dificuldade caminhei para fora de casa, quase petrificado pelo choque da confusão. Minha cabeça estava um caos: “Como assim eles não viajaram? Eles estavam aqui este tempo todo?”, assim pensava. Não havia respostas para tudo o que havia me ocorrido nas últimas semanas... Não! Foi tudo real demais para mero delírio. Entretanto, o que eu mais temia era a idéia que se formulava timidamente em minha consciência, a qual começou a brilhar ainda nas frases de minha irmã – e era também esta idéia que movia involuntariamente minhas pernas rumo ao pátio de casa.

Lá fora, na claridade silenciosa da manhã que desabrochava com aparência de velório sobre minha cabeça, diante de mim mais uma vez estava ela: tetricamente, como se pertencesse a algum reino onírico ou ilusório, a gata Preta me encarava com o sempre amarelo de seus olhos luzidios pelo sol; e entre as sacolas sobre as quais projetava sua sombra disforme, era possível notar claramente os membros mutilados de um bebê – contraídos contra o plástico fino.


Para o inferno junto aos gatos!
Com rancor,

P. 

XX/XX/XX

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Nota do editor: O escrito a cima se trata da carta de suicídio, conforme leva a supor as condições em que foi obtida, do chamado Sr. P, encontrada em seu quarto junto ao corpo. A cerca de seu conteúdo, é digno de nota que não foi encontrado nenhum cadáver de criança  em sua residência, conforme sugere a carta, tampouco vestígios da citada “gata preta”. De acordo com as informações dadas pelos vizinhos, não tinha irmã, cunhado, sobrinha ou família alguma: morava sozinho com três gatos de estimação – que, aliás, eram brancos.









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