10 março 2016

O que fazer da vida? O eterno retorno de cada dia





O humano está em constante ação, isto é, está sempre interagindo com o meio em que está inserido, sempre se submetendo conscientemente a pequenos ou grandes deveres, às responsabilidades profissionais ou acadêmicas, preso aos horários e atormentados por preocupações consequentes de tudo isso; tudo o que o homem escolhe fazer, inevitavelmente, irá direcionar a sua ação; também agindo ele intervém e cria aquilo que direciona a sua ação, e com isso ele se constrói e passa por toda a sua vida. É impossível negar: o homem e sua vida são frutos da própria ação; isto é, o homem existe agindo, sua existência se constrói na medida em que exerce sua ação, parte sempre de seu modo de agir. Mas como age o homem?Atualmente, dificilmente encontraremos alguém cuja rotina (isto é, a ação diária) diverge do que a moral vigente nos ensinou a considerar o adequado de um bom cidadão: acordar cedo, pegar o maldito transporte público lotado ou o trânsito matutino, frequentar a faculdade para ter um futuro, trabalho, voltar para a casa, estudar e dormir; nos fins de semana, aliviar as tensões – e preencher os curtos intervalos com as redes sociais. É difícil imaginar como que os muitos que se prendem a este modelo morno e pré-fabricado se sentem satisfeitos e dizem aproveitar a vida. Mas como saber realmente como viver? O que garante que os pontos dos quais parte minha ação são válidos, adequados ou corretos? O que define o que é correto ou bom para a vida? Num mundo onde as crenças, as ideias e as palavras são relativas, onde a sociedade, as instituições e nossa própria família atuam brutalmente sobre nós, sempre nos empurrando a Ser alguma coisa considerada certa e não outra, a Ser de determinada maneira e não de outra, parece impossível encontrar resposta satisfatórias para estas perguntas.

E vai além: como saber se tudo isso que faço vale realmente a pena? É realmente isto que devo fazer da vida? É realmente isto que quero fazer de minha vida? Devo mesmo fazer o que eu quero de minha vida? Devo mesmo querer fazer dessa maneira a minha vida? Cada ação, a maneira de me relacionar com os outros e com o mundo, os critérios para as minhas escolhas, para o modo como dirijo e planejo os rumos de toda a minha existência: como saber se são válidos? O que justifica e válida a vida e a maneira que estamos vivendo? Quem analisar tais questionamentos perceberá que são muito mais importantes do que o tênis, a casa ou o carro que você está em dúvida ou sonha comprar, é ainda mais importante que a faculdade que você cursa ou que a sua namorada e família, pois se referem a nada menos que o bem mais preciso e único de cada um: a própria vida. Refletir seriamente a cerca de tais questões pode ser angustiante e paralisante, e talvez leve a diversas mortes e renascimentos, arrependimentos e grandes mudanças de planos; e dependendo dos rumos que cada questionador tomar, pode levar a uma radical mudança em seu modo de ser.

Os homens que encontram consolo nas religiões e doutrinas do mundo, com seus santos, deuses e mundos espirituais de eterna paz, se vêem livres da angústia conseqüente do questionamento a cerca da própria existência, e conseguem interpretar tranquilamente seus papéis sociais, sempre guiados de seus socialmente estereotipados sonhos de “grande profissional bem remunerado”; afinal, para eles, os mandamentos de certo e errado do deus onisciente, as leis e normas sociais e a garantia de um lugarzinho num mundo sutil de pós-morte são parâmetros suficientes para guiar suas ações durante a vida. Além deles, os céticos e os acadêmicos também morrerão tranquilos acreditando que suas vidas foram bem aproveitadas, uma vez que integralmente dedicada à reprodução e ampliação do conhecimento cientifico do homem, e, portanto, para o desenvolvimento da raça humana. Também os indivíduos de pouca identidade e crença que, passivos, são levados pela correnteza não encontrarão dificuldades no decorrer de sua caminhada sobre a terra; as fúteis distrações digitais ou o álcool no fim de semana, o trabalho medíocre para satisfazer desejos de consumo pré-determinados (mas que acreditam ser próprios) lhes parecem o suficiente para preencher sua existência. Não obstante, há também outro tipo, muito menor e por vezes até despercebida de humanos; refiro-me àqueles que se recusam a repousar debaixo das explicações confortáveis da religião para as mais difíceis perguntas e que vêem como absurdo e medíocre todo o jogo de vida rasa e confortável. Estes homens procuram buscar por si só, unicamente a partir do que são, isto é, como humanos, demasiadamente humano, os parâmetros que proporcionem uma elevada maneira de ser – e não a deplorável limitação de potencial da espécie a qual os muitos se submetem –; Nietzsche talvez tenha sido o mais bombásticos de seu tempo, e foi ele que desenvolveu o que talvez seja o critério mais legítimo para cada homem guiar a própria ação: O Eterno Retorno.

"O mais pesado dos pesos. – E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu a vives e como viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e nada haverá nela de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!” – Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: 'Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele. te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"(§341 - Gaia Ciência¹)

O Eterno Retorno é simples, direto, esmagador para uns e extasiante para outros; resume-se em nada mais que um questionamento: E se toda a sua vida se repetisse eternamente da exata maneira? Tal pergunta não permite omissão de respostas nem fugas de si mesmo, e a própria reação individual ao simples considerar de tal possibilidade tornará clara sua verdadeira condição como existente, sua verdadeira relação com si mesmo: se você não vive a vida que deseja, se vive uma vida ruim, doente, medíocre, cheia de arrependimentos e infelicidades, o Eterno Retorno será visto como uma condenação, como uma ideia ridícula e descartável, pois lhe é inaceitável aquilo que tal pergunta lhe revelou – que você não ama a própria vida da qual é responsável –; mas se você vive uma vida autentica, uma vida sadia, completa em si mesma, se você realmente ama aquilo que vive, já viveu e a maneira que ainda viverá (pois confia na própria competência de viver), o Eterno Retorno será visto como a mais perfeita criação do pensamento humano, como o mais desejado dos sonhos impossíveis e tal critério ético será adotado como filho legítimo: para o indivíduo forte, viver infinitas vezes exatamente a mesma vida por ele construída é um privilégio, afinal, se realmente ama a existência da qual é responsável, nada seria mais prazeroso do que desfrutá-la novamente – num eterno retorno de cada instante que a compõe.

O Eterno Retorno diverge da interpretação religiosa do mundo e da existência, pois, nele, a vida é validada estritamente no próprio ato de vivê-la, de acordo com os valores construídos e transvalorizados pelo indivíduo ao decidir como realizar cada ato de vida, e não em mundos espirituais de pós-morte ou julgamentos divinos nos quais se salvarão apenas os que agiram de acordo com os valores religiosos que lhe foram passados; tampouco em seguir e cumprir os papéis (objetivos, ideais, comportamentos, estilo de vida) que os meios sociais atribuíram a cada. Para Nietzsche não há terceirizações: não há justificação num céu ou num deus; a vida só pode ser justificada por ela mesma. Também não há um castigo eterno infernal ou critério de imoralidade que impeça o desvio de atitudes do homem: o único medo que há é o de trair a própria legitimidade de ação é realizar um ato que cause desprazer ou arrependimento, pois este repetir-se-à eternamente.

Como tornar absolutamente válido o ato de viver? Como atribuir significado inflexível, completo em si (isto é, que se completa nele mesmo e em nada mais) a algo que se repetirá eternamente? Querer incondicionalmente, sem sombra de dúvidas ou incertezas, reviver tal ação – cada momento vivido –, implica em sua total afirmação. E como formar esta sensação intensa de Querer Reviver? Realizando cada ação da melhor forma possível: vivendo cada instante da melhor maneira possível; consequentemente, tendo vivido da maneira que realmente se quis viver, é inevitável não desejar que tal ciclo se repita mais uma vez e por toda eternidade.

[...]para o ideal do homem mais desenvolto, mais  vivo e mais afirmador-do-mundo, que não somente aprendeu a se contentar e a pactuar com aquilo que foi e é, mas quer tê-lo outra vez tal como foi e é, por toda a eternidade, clamando insaciavelmente da capo, não somente a si, mas à inteira peça e espetáculo, e não somente a um espetáculo, mas no fundo àquilo que tem necessidade precisamente desse espetáculo – e o torna necessário: porque sempre de novo tem necessidade de si - e se toma necessário.(§56 - Para Além do bem e do mal ²)

Visto isto, utilizar o eterno retorno como critério para a construção de si parece uma opção muito atraente, mas, ao refletir um pouco mais a fundo, fica evidente que o mais pesado dos pesos não pode ser sustentado apenas por boas intenções: sua aceitação implica em pesos maiores ainda, que apenas os verdadeiros afirmadores da vida conseguem erguer. O Eterno Retorno não implica na mera satisfação inconsequente dos impulsos, libertinagem ou em prender-se a objetivos de longos prazos; ele implica em um imenso senso de responsabilidade por cada ato, por cada instante que será vivido e como será vivido – Haveria responsabilidade maior do que construir uma vida que retornará eternamente? Cujo desejo de que se repita representa sua validade? Envolve também angustiantes conflitos mentais acerca das menores das escolhas – afinal, não são as pequenas escolhas a unidade mais básica da vida? –; diz respeito a questionamentos e indecisões a cerca das menores das atitudes, do modo como se é a cada momento. A todo segundo de sua vida, debruçar-se sobre o menor dos aspectos que lhe compõe e se perguntar: cada rua que eu percorro, qual entre todos os passos possíveis devo dar, os olhares que não lanço, as palavras que falo ou deixo morrer nos lábios, as injúrias, os deveres a qual me submeto e os direitos que deixo de reclamar por inércia, também as pessoas com as quais me relaciono ou não, os perdões e os agradecimentos; tudo aquilo que envolve a minha ação ou sua ausência: eu viveria isto eternamente? – tal é a conseqüência do Eterno Retorno como maneira de ser. Quem, a partir de tal proposta, avaliar aquilo que é e chegar à conclusão de que não gostaria de ser novamente da mesma maneira, irá alterar sua vida de maneira que garanta o contrário: para que sua repetição eterna seja desejada; ou seja, uma vida sem desgostos para consigo.

Se vivêssemos como se fossemos obrigados a reviver infinitamente a existência que construímos a todo instante, então precisaríamos fazer sempre o melhor, não importa em qual situação, com quem ou quando. Se cada homem refletisse sobre tudo o que compõe sua rotina, estaria ele satisfeito com o que faz da própria vida? Olhemos nas ruas: nos trens lotados pelas manhãs, o que as expressões e atitudes sugerem? Nas últimas aulas de segunda-feira, a qual o professor termina pontualmente 12h30, quantas são as expressões de tédio, de que estão agindo ali apenas por obrigação e não por real desejo? Nas próprias ideias das massas: quem não reclama do cenário político cuja incompetência afeta de maneira negativa a maneira de cada um de agir, os levando a agir em muitas ocasiões de maneira que detestam, mas nada fazem para alterar as condições coletivas que levam à ação individual indesejada? Aceitar o Eterno Retorno significa desenvolvê-lo e injetá-lo de tal maneira no modo de Ser no mundo que toda ação da qual é sujeito será inevitavelmente desejada de ser revivida; o afirmador da vida irá escolher, em cada ocasião em que atuar, entre as infinitas possibilidades de Ser (pensar, ver, agir), sempre a única que realmente desejaria a eterna repetição – seja no trem ou na aula chata. 

Mas se estou vivendo uma vida que irá se repetir eternamente da mesma maneira, sem a mínima mudança, e que, por isso, cabe a mim aqui e agora fazer tudo aquilo que quero que se repita após o fim, pois uma vez consumado o ato não há mais nenhuma possibilidade de transformar nem a mínima escolha; então eu deveria mesmo continuar me submetendo a tudo isso que faço a cada dia? A mesma aula chata? Ao mesmo trem? Ao mesmo parceiro (a)? Se forçar a amar e desejar a rotina de sempre, após aderir ao eterno retorno, é limitar as possibilidades e assumir a incapacidade de mudanças. Nietzsche nos ensina a ir além da mera rotina: é necessário explorar o inexplorado, buscar as possibilidades ocultadas pelas coisas que atualmente valorizamos. 

O homem que passa a viver, a agir e se construir tendo como base absoluta o Eterno Retorno, atinge cada vez patamares mais elevados de existência: estará sempre ultrapassando a si, e em algum ponto de seu crescimento, se sentirá coagido a libertar-se da própria forma a qual se acostumou a desejar reviver: encontrará cada vez mais alternativas para como desfrutar de cada momento, as possibilidades de como existir parecem cada vez mais amplas, mais selvagens; a vida parece caminhar para além das expectativas, e é cada vez mais poderoso o impulso a desdobrar-se para todas as direções de forma perigosa e imprevisível, mas ainda assim legítima. Para os que atingem este posicionamento perante o mundo, a vida normal, a vida de rebanho da qual se libertou parece cômica; do alto das montanhas, vê claramente: terrenos cheios de existências limitadas, de impulsos reprimidos e abominados por instituições inquestionáveis; de potencialidades jogadas fora; de juventudes que lamentavelmente acreditam encontrar algo de digno na diversão frívola e efêmera dos psicoativos, quando na verdade nada mais estão fazendo do que assumindo a imensa incompetência em encontrar prazer na vida por si só, e por isso recorrem a substâncias que distorcem a percepção da realidade; grupos inteiros que passam pela terra apenas para provar a decadência de seu tempo, pois nada mais fazem do que seguir passivos aquilo que a sociedade fizera deles; falatórios de pseudo-intelectuais e pseudo-revolucionário que não agem, apenas repetem o mesmo discurso – em uma palavra: para este homem que vai sempre além, o homem normal e seu mundo são dolorosas vergonhas para a espécie.

Enfim, quais seriam os homens suficientemente de bem com si mesmo dispostos a aceitar viver sob o incessante monitoramento da própria existência a fim de torná-la desejada de ser vivida eternamente idêntica? Seria você capaz de aderir ao Eterno Retorno como parâmetro único de ação no mundo, ou não suportaria o mais pesado dos pesos com seus braços frágeis? Você temeria simplesmente imaginar tal possibilidade ou a receberia de braços abertos? Prefere contentar-se com sua existência medíocre, em ser simplesmente mais um humano, ou ser demasiadamente humano? Seguir os rumos fáceis da vida comum e morrer em paz, ou enfrentar o ar rarefeito das montanhas e ver o mundo do alto? Viver uma vida regrada de acordo com os princípios de terceiros, na esperança de ser recompensado num céu, ou viver de maneira forte e flamejante segundo os próprios valores, para no fim não desejar nada mais do que a eterna repetição de si próprio – o Eterno Retorno do que você fez de você.
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¹NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
²NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1999.


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