23 janeiro 2016

Tempos Modernos - Conto

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Uma reflexão sobre a vida e seus significados dentro de uma imaginativa analogia moderna

Tempos Modernos
Esse conto foi editado (expandido) no dia 10/12/17

Era um moderno restaurante comum, apesar do gigantesco tamanho. As mesas estavam forradas, os copos estavam cheios, a banda tocava uma música qualquer e os mestres do domínio serviam grandes, pesadas e suculentas porções de uma ilusão gordurosa. Os clientes exalavam brilhantes sorrisos, idolatravam tempos passageiros, compilando a vida em um projetor de flashbacks. Clamavam por mais, pagariam por mais, se arrastariam se fosse necessário. As máquinas pifariam sem suas doses de ego. Por Deus, sirvam le plat!

Conversavam palavras de ódio e se enganavam o tempo todo, usando convincentes disfarces uns com os outros. Às vezes, tentava falar sobre o tempo, em todos seus mistérios indecifráveis, em todos os seus medos. Qual seria o sentido vida, a natureza das memórias? Eram perguntas esquecidas, já estavam todos corrompidos, a gordura das ilusões endurecera seus corações. O amor se tornou banal, uma mera palavra jogada ao vento, definida por construções que o transformavam em uma definição matemática. Sentimentos numéricos, ordens pragmáticas, cordéis estabelecidos.

— Abram o prompt de comando!

— Que horas são?

— Abram o prompt de comando!

As lembranças? Uma grande peça de teatro. As identidades estavam há muito rasgadas, os poetas estavam perdidos, os sonhadores haviam sido esquecidos. Ali, os quadros eram vazios, as musicas eram fúteis, o cheiro era nulo. Eram movidos por aspirações artificiais, padrões da modernidade, buscas pela grande felicidade. Aonde ela estaria? Procuravam por uma caixa de pandora que era tão bonita por fora, mas tão sádica em sua malícia invisível. Não ligariam, idolatrariam os demônios da falsa felicidade se necessário, e condenariam os loucos que os questionasse.

— Morte aos libertinos!

— Guilhotinem os loucos melancólicos!

E foi em um dia comum, em que o burburinho das conversas e o som dos talheres acontecia em sua bizarra normalidade que aquilo aconteceu: a iluminação inesperada, o estopim da loucura, o primogênito da arte. O chão começou a tremer e, lá fora, uma densa chuva despencou em surpresa. Raios! Os relâmpagos surgiram, e enquanto os lustres da ilusão balançavam e falhavam, a luz efêmera da poderosa natureza iluminava pelas grandes janelas. O som dos trovões acompanhava o tremor, as paredes se moviam como finas lâminas onduladas e grande parte dos clientes gritavam assustados. Alguns, estupefatos pela quebra de suas confortáveis rotinas, se escondiam em baixo das mesas e rezavam para seus matemáticos deuses, em suas numéricas crenças. Havíamos nos tornado escravos das esperanças materiais, inocentes das promessas.

— Abram o prompt de comando!!! — urravam os senhores diante do caos.

A quebra do programado, a desatinação da desventura, o som ensurdecedor e as luzes psicodélicas. O caos assombrava os homens comuns, os fazia tremer, pois como homens da caverna temiam o desconhecido, a ousadia das experiências e a alegria dos já assassinados artistas ainda vivos em raros livros de história. Para onde foi a filosofia? Para onde foi a liberdade? Entre a multidão de insanos rastejantes, alguns poucos encaravam o curioso evento com olhos de criança, que brilhavam na mais honesta das curiosidades.

O tremor parou, as estruturas estavam firmes novamente. A chuva se tornou mais tranquila e os raios cessaram. Aos poucos, as pessoas se levantavam aliviadas, cobiçando o preenchimento de seus novos vazios, afinal, deveriam evitar os possíveis questionamentos. No entanto, para a surpresa de todos, um poderoso clarão desceu dos céus rasgando a tranquilidade novamente. Com estrondo, a bola de eletricidade pousou em nosso mundo, levantando uma extensa cortina de fumaça. Todos olharam em  direção a porta, ansiosos pelo que dali viria.

A grande porta de duas abas se abriu com um chute, como na abertura impetuosa de nossa percepção preguiçosa. Da cortina de fumaça, a figura de um humano se revelou: estava com densas vestes espaciais prateadas e um pesado capacete com um grande visor. O astronauta deu pesados passos para frente e um de nossos mestres foi até ele.

— Revele-se astronauta! Quem és tu para desafiar a hegemonia de nosso mundo? — perguntou o senhor, evidentemente alterado.

O misterioso colocou as duas mãos no capacete redondo e o virou para a direita, destravando-o da base. Com um movimento para cima, desequipou o objeto, deixando-o cair no chão com violência. Era humano como nós, contudo, suas cicatrizes estavam expostas, suas rugas e expressões visíveis, havia ignorado as modernas maquiagens talvez, pensei. Seu cabelo negro também se distanciava de nossos cortes milimétricos e padronizados, batia em seus ombros e era extremamente bagunçado. Como ele poderia?

A grande maioria encarou nosso visitante com nojo e repulsa. Porém, eu o encarei com uma inédita e medrosa admiração. Dizem que apenas um sincero admirador é capaz de identificar a auto repreensão de outro e, naquele dia, consegui perceber que alguns poucos conterrâneos viam aquela surpresa com maravilha também. Como era feliz tal observação, não estava afinal sozinho no manicômio da normalidade.

— Eu sou o viajante da tempestade! E pelos anéis de saturno, o mundo esqueceu mesmo de sua arte. — respondeu o visitante em voz rouca. 

— Abram o prompt de comando! — ordenou o mesmo mestre imediatamente, digitando comandos em um pequeno computador em seu braço.

Como cães sarnentos obedientes, alguns clientes pegaram as facas em suas mesas e correram em direção ao astronauta, tentando esfaquear a figura ameaçadora do desconhecido. Por algum motivo, eles não conseguiam. As lâminas perfuravam sua roupa e abdômen, mas aquele homem não estava ali como uma presença apenas física, era um símbolo, um sentimento, uma inspiração à liberdade dos oprimidos.

Me virei para o maestro da banda que durante anos conduziu suas composições vazias, me lembrei de que notei admiração em seus olhos quando nosso visitante chegou. Ele agora encarava suas mãos, como se sentisse um poder correndo por suas veias. Colocou a mão em seu rosto e retirou sua máscara de pele com força, deixando suas profundidades a mostra. Se virou para sua grande banda e com expressivos e virtuosos movimentos dos braços, começou a conduzir um animado Jazz setentista, com um excepcional ritmo dos bateristas e uma bela harmonia das madeiras e metais. A liberdade dos saxofones era inspiradora! Seria aquele o som da liberdade? 

Nosso mundo de ilusões se revirava pela primeira vez. Alguns começaram a batucar o ritmo nas mesas e os artistas aos poucos se levantavam. Aspirantes a pintores corriam pelos corredores e faziam arte nas telas vazias com as gordurosas comidas, a abstração dos sentires explodia no ritmo daquela louca composição, a anormalidade da arte se expressava, colorindo nosso mundo cinza com os tons melancólicos dos pensadores. Nosso astronauta continuava no chão, sendo esfaqueado e condenado por multidões. Mas assim que ouviu aquele som da rebeldia, o homem sorriu como o maníaco masoquista que provavelmente era. Nosso mundo precisava da loucura!

Jogaram seu corpo para fora como exemplo, onde apodreceria nos julgamentos de outros senhores do planeta. O astronauta continuou a sorrir, e mesmo com todas as feridas, não tinha vergonha em expô-las, parecia orgulhoso de sua unicidade. Jogá-lo para fora teve um efeito reverso, o caos não pararia mais. A musica continuava em progresso ao passo que cada vez mais pessoas retiravam suas máscaras e abraçavam suas liberdades na revelação de suas mágicas expressões pessoais. As dores da arte de ser, da arte de fazer arte eram sentidas com prazer pela primeira vez!

Continuei parado, o medo tomou conta de mim. Parte de meu espírito aventureiro se entregava para aquela causa sem rumo, enquanto a outra, acostumada com aquele mundo, acomodada com as pequenas regalias, temia seus resultados. Questionava, mas também admitia as vantagens das ilusões, das alegrias superficiais, das caixas que, às vezes, brilhavam tão forte. Antes que eu decidisse, o senhor dos senhores apareceu.

— Abram o prompt de comando! — ordenou em uma voz imponente.

Os libertos continuaram suas expressões. Já os neutros como eu obedeceram sem hesitação. Era um poder que estava acima dos meus, éramos homens perdidos, de faces robôticas, de decisões matemáticas, de alegrias numéricas. Abri meu prompt de comando e não me lembro de mais nada daquele dia.

Era um moderno restaurante comum, em um mundo moderno matemático, com pessoas igualmente numéricas. As mesas estavam forradas, os copos estavam cheios, a banda tocava uma música repetida que eu não me enjoava de ouvir. Os mestres do domínio serviam o de sempre, deliciosas e suculentas porções de uma ilusão que era necessária. Eu e os clientes exalavam brilhantes sorrisos, idolatrando a passagem do tempo e compilando a vida em uma graciosa montagem de flashbacks que, apesar de amenos, eram muito agradáveis em sua repetitiva fórmula.

Décadas se passaram. Minhas memórias se resumiam naquele restaurante, no trabalho que não lembro aonde era e naqueles amigos que esqueci o nome. Todos os dias, antes de sequer me olhar no espelho, sempre passava as maquiagens mais recomendadas do momento, olhava meus flashbacks e me sentia estranhamente feliz, belo e encantado, ignorando o cansaço. Às vezes, me lembrava daquele astronauta louco, inspirando malucos com declarações absurdas, como ele poderia desafiar tão positivo sistema?

Embora amasse a vida em seus rotineiros momentos espetaculares, em suas sensacionais pequenas coisas programadas, o cansaço pesava cada vez mais. Não sei bem o porquê, mas uma pergunta veio a cabeça e a fiz para um garçom que passava ao meu lado.

— Que horas são?

— Abra o prompt de comando. — ele respondeu em uma voz robótica.

Abri meu prompt de comando e não me lembro de mais nada daquele dia. Minha próxima memória me leva para uma sala escura com várias cadeiras enfileiradas ao meu redor, todas ocupadas por pessoas como eu. Lembrava um cinema, apesar da atmosfera sombria e da ausência de uma grande tela. Peguei um espelho que sempre carregava em meu bolso e olhei para meu rosto. Oh céus, como estava enrugado! Aonde estavam as maquiagens?

Apenas um frio horripilante que subiu pelo meu corpo respondeu minhas perguntas. Sentia o fim se aproximar, sim, estávamos no salão da morte, esperando pelos nossos julgamentos finais. Não sabia o que sentir, arrependimentos de nada adiantariam, restava-me chorar pela vida que não vivi e pela limitação de não poder continuar vivendo-a. Minhas lágrimas frias já apareciam quando ouvi um som familiar, um ritmo estranho ao meu lado.

Sequei o rosto e me virei para a poltrona a direita. Um velho homem de longos cabelos brancos se encontrava extremamente machucado e ferido, expunha suas marcas por todo seu corpo mesmo assim. Fazia o ritmo com as mãos, no braço da cadeira, e parecia encarar toda a situação com uma tranquilidade que mais nenhum ali portava. Por que estaria tão feliz? Em minha última curiosidade, conversei com aquela estranha figura.

— Eu conheço essa musica. — disse, abordando-o.

— Oh, então você estava lá. — ele respondeu 

— Lá onde? 

— No nascimento da arte! Quando o primeiro de nós voltou ao nosso tempo. — ele falou com orgulho.

— Nós? — questionei.

— Você não, meu caro. Se lá estava, fez outra escolha. Caso contrário, aonde estão suas cicatrizes?

— Ora, olhe em meu rosto! Estão por toda a parte! — o contestei.

— Sim, marcas de expressões sorridentes, um corpo de ilusões. — debochou.

Um grande mestre entrou na sala e começou a organizar algumas máquinas. Deveria me virar para frente em reverência, mas decidi continuar conversando com aquele homem que, apesar de me ofender, me intrigava de forma quase incômoda.

— Olhe para você! Está destruído e agora todos nós iremos desaparecer. Todas nossas memórias, todas as nossas experiências! Cada segundo de nossa vida será entregue aos acasos de Deus, seremos julgados pelos processos numéricos e talvez condenados pela matemática, consegue imaginar? O fim de todas as coisas que conhece? O fim de todo seu ponto de vista, de toda a nossa consciência. Como pode sorrir? Talvez encontremos nossos paraísos após o fim, mas o inferno não lhe dá medo? — tentava o entender.

O homem começou a gargalhar antes de responder.

— Mesmo sem perceber, meu caro, você encara a morte como a liberdade de sua agonia, dos arrependimentos que nunca se permitiu ter, da identidade que nunca existiu. Eu mesmo vim até aqui hoje. — ele afirmou.

— Por que?! — perguntei, irritado por suas declarações que de alguma forma pareciam verdadeiras.

— Porque encaro a morte como o descanso de minha felicidade, não como a promessa futura de tal sentimento, não como a liberdade de minhas correntes invisíveis. Depois daquele dia, nunca frequentei seus restaurantes, lembro-me do nome dos meus amigos e meus flashbacks nunca foram apenas flashbacks. Oh sim, as cicatrizes! São elas que nos tornam especiais, são elas que transformam poetas em poetas, pintores em pintores, artistas em artistas! A grandeza dos homens não está no lugar onde as pessoas procuram, a grandeza está em nossos corações livres, em nossos espíritos aventureiros, na perspectiva de um artista inspirado pela vida e nas pequenas coisas especiais que este conjunto de surpresas pode nos proporcionar. Pequenos mas sinceros beijos, passageiros mas delicados gestos de carinho, abraços confortantes em um dia triste de arrepios sentimentais. O amor do mundo se projetou no infinito, nunca os homens esperaram tanto por suas mortes, a cobiça secreta, o falso temor pelo estranho desejo. "Oh ceifadores das sombras, cortem a minha cabeça!" os tolos clamam em segredo, vejo em seus olhos tristes, em suas almas vazias.

Aquelas palavras encantavam meus ouvidos, esmagavam minha alma e me pesavam a consciência ao mesmo tempo. Paralisado, arrasado, esfaqueado, tudo que pude fazer foi uma última declaração, uma pergunta, uma honraria ao grandioso que ali se encontrava em uma forma de agradecer por aquela última breve reflexão que apesar de curta, me tocava os sentires como nada antes.

— Qual o seu nome? Oh soldado das raras fortunas, pescador dos velhos devaneios, imperador de seu próprio império único, colecionador das cicatrizes, esquecido amador dos tempos modernos, desatinado aventureiro, aprendiz do astronauta, Revele-se! Quem és tu?

O poderoso senhor na parte frontal da sala ligou duas máquinas que emitiram uma forte luz branca. O velho ao meu lado levantou a cabeça e respondeu em voz rouca com a imponência de mil senhores do nosso mundo à luz daquelas máquinas misteriosas.

— Eu sou um viajante da tempestade. — ele acenou em despedida.

Uma lágrima fervente escorreu pelo meu rosto.

— Abram o prompt de comando! — o mestre na sala berrou em seguida.

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